Colhendo os frutos da violência - FERNANDO GABEIRA
O ESTADO DE S. PAULO - 30/08
Usei um verso de Drummond para definir os acontecimentos de junho: nasce uma flor no asfalto. E disse que seu maior inimigo era a violência, que terminaria por esvaziar as mas e fortalecer o lado que se pretende combater. Não pensava em nada do tipo conselho aos jovens. Apenas dizia que é ilusão supor que a História recomeça do zero. Vive na minha memória, e de todos os sobreviventes dos anos 6o, a lembrança dos acontecimentos que resultaram na luta armada e no fortalecimento da ditadura militar.
Os grampos que se radicalizam na maré baixa dos movimentos acreditam estar mantendo o espírito e preparando nova investida. No 7 de Setembro, quem sabe? Tenho algumas razões para discordar dessa tática, para além da pura e simples objeção à violência. Claro que não me importo com os mal-entendidos nem espero indulgência dos críticos. Valho-me do sentido da realidade que às vezes abandona os grupos radicais quando as mas se esvaziam e só ouvimos o barulho do trânsito.
Nas ruas multidões portavam cartazes dizendo: "Desculpem o transtorno, estamos mudando o Brasil. As pessoas viam isso com tolerância, pois era verossímil que tamanha energia concentrada pudesse mudar o País. O mesmo não vale para um grupo de vanguarda, pois é difícil atribuir capacidade de modificar o País a círculos isolados que se escondem sob máscaras e destroem símbolos do capitalismo.
Essas ações pedagógicas são realizadas na esperança de que I se universalizem, de que outros as sigam e todos juntos destruam o sistema. Por essa esperança as pessoas se arriscam a ser presas. Acham que mais cedo ou mais tarde vingarão os frutos de sua ação pedagógica. O difícil é ver o tempo passando no cárcere e perceber que tudo aquilo era uma ilusão, constatar que a maioria esmagadora segue rejeitando a violência como forma de luta política.
É preciso passar um tempo no cárcere, comprometer a própria vida, para aprender essa lição elementar? Pode ser que entre os que queimam e destroem haja alguns que o façam por uma simples explosão nervosa. Mas os que organizam sistematicamente e consideram a tática correta estão jogando conscientemente com o próprio futuro.
Cansei de ver quebra-quebras em Berlim no 1.° de Maio. Sempre os mesmos, sempre na mesma loja de departamentos.
E a Alemanha segue seu rumo.
Os políticos agora refluíram e a polícia brasileira parece indecisa sobre o que fazer com a violência que sobrevive no rescaldo das grandes manifestações. Os políticos temem a eleição, sabem que, mesmo calados, terão dificuldades em 2014. Por que se pronunciar e afastar mais a chance de voltar ao cargo?
Os resultados da baixa maré são claros. As bandeiras principais dos movimentos foram enfraquecidas. O governo recupera gradualmente o prestígio perdido. Não importa se o gigante acordou ou voltou a dormir. Vamos supor como correta a inversão daquela frase comum: quanto mais as coisas ficam as mesmas, mais elas mudam. Ainda não sabemos o impacto que o movimento de junho deixou na consciência de muitos. A pura observação nos autoriza a dizer que se buscava mais a condenação da política do que propriamente uma alternativa. Não só continuaram insolúveis alguns problemas na área política, como se acentuaram os indícios de que a ilusão de prosperidade sustentada foi para os ares.
A queda do real é só mais um capítulo da queda na realidade. Espera-se um aumento da gasolina e com ele mais aperto no bolso, apesar de sua correção. A sensação de crise econômica ; aos poucos vai se impondo à euforia da prosperidade, mas não há nenhuma esperança, no momento, de que possa ser superada por uma visão correta do atual governo.
A política externa brasileira continua sendo a política de um partido. Foi preciso que um jovem diplomata arrancasse um asilado de um quarto da embaixada em La Paz e fugisse com ele para o Brasil. No episódio da prisão dos torcedores corintianos, o mesmo diplomata, Eduardo Saboia, se esforçou para atendê-los enquanto as negociações com Evo Morales patinavam.
Estive na Bolívia para cobrir a revolta dos índios contra a construção de uma estrada na região Amazônica com financiamento do BNDES. Dois governos que se dizem populares se meteram numa aventura altamente impopular. Alguns adeptos do PT acham que é preciso falar fino com a Bolívia e grosso com os EUA. Será que a maioria da Nação realmente se sente paternal diante da Bolívia e ofendida diante dos EUA?
Com todos os descaminhos do governo é preciso contar apenas com novas manifestações? Elas têm um grande poder, mas já não somos inocentes sobre seu alcance real. Os políticos encenam um esforço concentrado, esperam o refluxo do movimento e caem, de novo, nas mesmas práticas repulsivas.
As grandes manifestações de junho tiveram o poder de revelar a incapacidade do sistema político no conjunto, a incompetência do governo e a repulsa à corrupção. Está na hora de valorizar não só o protesto, mas a busca de alternativas reais para o País. O crescimento dos últimos anos, apoiado numa bolha de consumo, parece ter chegado ao fim. A mediocridade do governo fica mais clara ainda.
Manifestações são vitais, mas a História é mais parecida com maratona do que tiro de cem metros. E a política, uma navegação que requer conhecimento dos mares, rochedos, portos a serem alcançados e as dificuldades do caminho. Estamos à deriva. Tal como na Espanha, sabemos o que as pessoas não querem. Prevemos altos índices de voto nulo. Cairá a legitimidade do poder político. Saída mesmo ainda não se vê no horizonte.
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