segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O STF e o velho Brasil - JOSÉ MURILO DE CARVALHO

O GLOBO - 30/09

Os juízes da Suprema Corte americana que deixaram seu nome na história foram exatamente os que inovaram, alteraram a jurisprudência


O STF, com a ajuda da Procuradoria Geral e do Ministério Público, criara na opinião pública a expectativa de que estaria havendo uma inflexão na curva da jurisprudência brasileira no sentido de introduzir visão mais ampla e atual do papel da lei na sociedade. A entrada de dois novos ministros, no entanto, fez com que o que parecia inflexão se tornasse, nas palavras de um deles, apenas um ponto fora da curva, a ser corrigido, como de fato o foi. Com a correção, voltou-se ao velho, à nossa tradição de desigualdade na distribuição da justiça, bem traduzida na conhecida expressão popular: rico não vai para a cadeia. A jurisprudência bacharelesca foi recolocada a serviço do privilégio. Perdeu o STF, perdeu o país, perdeu a República.

Vale a pena examinar um dos principais argumentos brandidos pelos embargantes para eliminar o incômodo ponto fora da curva. Trata-se da ficção criada para dar legitimidade aos juízes na ausência de mandato popular. A ficção consiste em alegar que o juiz age segundo a razão, a lei, a justiça, de modo neutro e imparcial. Para atingir esse objetivo, ele tem que evitar o contágio da emoção, da paixão, do partidarismo, vícios próprios da opinião pública, da mídia, da multidão, do povão. O juiz, encastelado em sua torre de marfim, tem que se distanciar da sociedade, mesmo quando ela sai em massa às ruas clamando, entre outras coisas, pelo fim da corrupção, ou quando se manifesta no mesmo sentido em dezenas de pesquisas de opinião pública. Consta mesmo que o ministro que desempatou a votação dos embargos votou certa vez contra sua convicção só para não parecer que concordava com um jornal que antecipara seu voto.

Esse juiz imaginado, pairando olimpicamente sobre sociedade, é um ET, não existe. A ficção tem sua razão de ser e sua utilidade, mas não pode ser levada muito longe. As leis sempre permitem mais de uma interpretação, sobretudo as leis penais brasileiras, que são um cipoal de onde se pode, com ou sem chicana, extrair interpretações contraditórias, todas elas legais, técnicas, racionais. Nessas circunstâncias, a opção por uma interpretação, sobretudo em casos polêmicos como o do mensalão, será sempre metajurídica, dependerá de interesses, convicções, emoções, lealdades. Quanto mais técnica se pretende, maior a probabilidade de não o ser.

Como se dizia das eleições da Primeira República: quanto mais perfeitas as atas, mais falsas as eleições. Ou no latinório caro aos juristas,summum jus, summa injuria (o máximo de direito é o máximo de injustiça). Em meus tempos de estudante dizíamos brasileiramente dura lex, sed lastex (a lei é dura, mas espicha). Dessa situação, aproveitam-se todos os que têm recursos para contratar os melhores advogados do país, que, por sua vez, sabem muito bem como esgrimir a miríade de recursos a seu dispor e com eles convencer juízes. É assim que, passados nove anos do crime do mensalão, realizadas mais de 60 sessões de julgamento pela suprema corte do país, ainda se achou como argumentar que o direto de defesa dos réus de luxo ainda não se tinha esgotado. Foram mobilizados os embargos infringentes, criados por dispositivo regimental não confirmado em lei. É pena que tanta garantia seja reservada a poucos privilegiados e negada a dezenas de milhões de brasileiros. Esse uso do direito ao devido processo legal é a negação da igualdade perante a lei, base da República.

Em contraste, a operação Mãos Limpas, levada a efeito por promotores e juízes italianos na década de 1990, e dirigida contra vasto esquema de corrupção nos partidos políticos, emitiu milhares de mandados de prisão de políticos, empresários, funcionários públicos, entre eles 438 parlamentares. O Watergate, de 1972, teve 69 funcionários públicos acusados e 48 condenados. Dois anos após a denúncia, os culpados já estavam na cadeia, entre eles três altos funcionários ligados ao presidente Nixon, que, ele próprio, se viu forçado a renunciar. Em contraste, graúdos entre nós raramente pisam na cadeia e quando o fazem é em cela especial e não esquentam o lugar. Uma liminar, um habeas corpus logo os libertam e uma infinidade de recursos adicionais adiam, reformam, anulam as sentenças condenatórias.

Os juízes da Suprema Corte americana que deixaram seu nome na história, como Oliver Wendell Holmes Jr. e Earl Warren, foram exatamente os que inovaram, alteraram a jurisprudência. A lei para eles não era fetiche, era produto histórico que precisava ser constantemente adequado às contínuas mudanças por que passava a sociedade. Para Warren, até mesmo a Constituição não era um conjunto de cláusulas pétreas, mas um “documento vivo”, a ser constantemente reinterpretado. Eram juízes de olho na sociedade, sem medo da opinião pública, sempre fora da curva, em busca de novas curvas.

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